6 de dez. de 2018

LUTAR OU MORRER


Enquanto meu irmão se contentava gastando o pouco tempo que nosso pai nos dava de folga e o dinheiro minguado que ganhava fazendo favores ao patrão, eu metia a cara nos livros que conseguia emprestado com a professora. Sonhava com uma vida diferente da que estava acostumado a ver. Embora não conhecesse quase nada sobre o sistema, tinha leve impressão que ele estaria contra mim, mas a convicção de que seria possível atingir os objetivos era maior que qualquer adversidade.
As garotas diziam que eu era “mulherzinha” por não aceitar seus convites para tomar guaravina com bolacha de dieta no barracão da usina. Meu irmão adorava essa ideia! sempre voltava contando vantagens, embora depois tivesse que lamentar por pagar a conta sozinho.
Eu só dava descanso aos meus olhos todas as noites, quando o pouco gás que minha mãe reservava no candeeiro acabava:
- Assim que acabar o querosene, vê se vai dormir, não quero você amanhã com os olhos inchados de tanto ler este negócio aí.
A noite parecia ter menos de trinta minutos, muitas vezes pensei que meu pai havia acordado o galo antes de nos recomendar as tarefas diárias. Incentivo? Só mesmo de minha mãe. Nos finais de semana eu preferia ficar isolado tentando responder aqueles problemas matemáticos que a professora passava para a lição de casa.
Como consequência das saídas de meu irmão para tudo quanto era festa e por se achar o garanhão da região, teve que se mudar para outra usina a fim de conseguir dinheiro para sustentar seus quatro filhos, sem contar com os xingamentos das mães, que todos os dias ameaçava de procurar a polícia se ele não pagasse as pensões.
Foi uma festa maravilhosa quando concluí o primeiro grau, todos estavam felizes, pensei até em usar no discurso algumas palavras novas que havia aprendido no dicionário, mas depois desisti, ninguém ia me entender mesmo.
Na manhã do dia em que completei dezoito anos de idade, o sol parecia muito mais bonito. Duas semanas depois, parti para o Sul em busca de sonhos aparentemente difíceis, mas não inalcançáveis. Não deu pra ver se meu pai estava chorando, ele inventou que ia colher espigas de milho justamente meia hora antes de minha saída. Minha mãe me abraçou com um dos braços, enquanto segurava o quinto neto de dois anos com o outro. A poeira da estrada causada pelo caminhão pau de arara foi aos poucos apagando a imagem de minha mãe acenando pra mim com um choro de despedida, fui tentado a pensar que jamais voltaria a esta terra novamente. Foram dias cansativos, mas consegui chegar ao destino. Com exceção dos sonhos, tudo era novo para mim.
 Os prédios de São Paulo me fizeram esquecer por alguns instantes as lágrimas de minha mãe, não sei quantas vezes chorei sozinho escondido no banheiro imundo da oficina em que trabalhei por quase três anos, mesmo assim, o sonho de concluir o segundo grau estava mais vivo  que nunca.  Centenas de vezes tive que sair às pressas apenas para fingir um banho, a fim de tirar a graxa das unhas e pendurar o macacão, na maioria das vezes tinha duas escolhas: Comer alguma coisa antes de sair ou perder as duas primeiras aulas. A segunda opção nunca fez parte da minha agenda, embora muitas vezes tenha chegado atrasado, devido ao tempo esperando a condução. A escola em que conclui o segundo grau ficava a duas quadras do barraco que eu havia alugado, a volta do trabalho pra casa me dava dor de cabeça e arrepios, pois nunca dava tempo passar em casa antes de ir para a aula, e quando isso era possível, o lanche rápido saía do armário improvisado direto para o estômago. Os trabalhos escolares e as pesquisas em livros doados ou emprestados continuavam tomando parte da minha noite, e estas pareciam cada vez mais curtas, o cantar do galo que me acordava todas as manhãs fora substituído por um despertador nervoso que achava sempre de me acordar na hora mais gratificante do sono.
Uma festinha de encerramento intitulada Aula da Saudade comemorou a despedida da turma do terceiro ano, tendo como atração principal os bilhetinhos e mensagens trocados entre os colegas mais próximos. As rápidas falas de alguns dos professores me incentivaram a continuar na luta, deixando-me a certeza de que meu sonho estava cada vez mais perto.
Noites cada vez mais curtas, mais livros emprestados e muita luta. Meu objetivo: Ser aprovado no vestibular de medicina em uma Universidade Pública. Desempregado e sobrevivendo fazendo “bico” recebi incentivos de uns, desânimos de outros, mas consegui ser aprovado na primeira tentativa.
O contato com meus pais era apenas através de cartas que demoravam até um mês para chegar em minha região, talvez tenham sido eles os últimos a receberem a boa notícia.
Foram anos de lutas, ajudas, choro, marmitas frias, escolhas, noites curtas, dias cansativos, mas nenhum desanimo ou reprovação.
Amigos do curso e professores notaram meu desempenho e inúmeras vezes foram solidários comigo, inclusive custeando minha visita ao Nordeste para o sepultar meu velho pai.
A colação de grau foi o acontecimento mais importante da minha vida, em meio aos trinta e cinco formandos, eu parecia mais feliz que todos. Pensando nesta data, com muito esforço consegui juntar o suficiente para pagar as despesas da formatura e ainda trazer minha mãe para conhecer São Paulo.
Mais rápido que o esperado consegui o primeiro emprego em um hospital particular, no entanto, meus sonhos não estavam totalmente realizados, eu pretendia continuar estudando, e me preparando para casar com a garota que conhecera a dois anos, tínhamos muita coisa em comum, entre elas o desejo de voltar para nossa terra de origem. Um ano depois de minha formatura estávamos diante do altar, ela recém formada em odontologia e eu iniciando meu primeiro doutorado.
Voltar para nossa terra, com condições suficiente para educar nossos filhos é um sonho hoje não tão difícil de ser realizado, no entanto pretendo concluir meu primeiro doutorado antes de pensar na primeira prole. Enquanto isso tento convencer minha mãe a ficar por mais uns dias longe do Nordeste. Vez ou outra ouço repetir a frase:
- Antes de morrer quero voltar pra minha terra, não me acostumo em cidade grande.
Anos de lutas, alegrias, sonhos alcançados, desejos realizados e muitas histórias vividas e ainda sonhadas, fazer malabarismo para conseguir dividir o tempo entre o hospital público onde trabalho, o consultório, a família e os estudos tem sido talvez a tarefa mais difícil até agora.
Olhando o passado e tudo quanto conseguimos, observando minha mãe com quase oitenta anos de idade, assistindo sua novela predileta, sem ter muito com que se preocupar, a não ser voltar para sua terra, enquanto reviso minha segunda tese de doutorado, me pergunto: Por que meu irmão se contentou apenas em administrar minha fazenda? Por que sorriu quando admiti uma de suas filhas como secretária em meu consultório?
É! Se não formos fortes, o sistema nos engole.

Um comentário: