9 de out. de 2019

GILENO PÉ-DE-FERRO


AUTOR: JOSÉ AMAURI CLEMENTE
Esse conto recebeu menção honrosa no concurso de contos realizado pela Secretaria de Cultura de Alagoas.

Gileno era daqueles caras que levava a sério o que o pai dizia. Fora ensinado desde menino que homem que é homem não foge da luta, principalmente em briga de rua, lugar ideal para se pegar nome e ficar famoso.
Já com dezessete anos de idade, pensava ainda como um garoto de doze e acreditava ser invencível, por isso adorava meter-se em confusão. Mal acabava de entrar no campo e pronto! O time inteiro se desesperava, a bagunça estava armada. Quase sempre estava errado, mas quem ousaria enfrentar Gileno Pé de ferro? Os torcedores presentes no campo nos domingo e feriados estavam mais pelos arranca-rabos durante a partida do que mesmo pelos gols.
A frase mais conhecida no final de cada briga ou discussão era formada com palavras desconhecidas pelo dicionário português, mas bem popular no cotidiano dos jogadores:
- Cumigo é assim mermo, quem num aguentá que se isproda!
Seus cento e oitenta e dois centímetros de altura lhe dava total confiança, e medo a quem de baixo lhe olhava, ninguém ousava lhe enfrentar, bastava o nome e toda molecada tremia, não eram poucos os que sonhavam em tirar seu pigarro de valentão. Mas isso era sonho!
Em contraste com seu tamanho e peso, apareceu não se sabe de onde, Pedrinho Pitoco, que apesar de não parecer, tinha lá seus trinta e cinco anos de idade. Ganhou esse apelido por ser de pequena estatura, pois sofria de nanismo. Tudo que se sabia sobre sua origem era que havia trabalhado em circos como palhaço, nada mais. Era um cidadão pacato, sem muitas palavras, contrastando em tudo com Gileno Pé de ferro.
Sob gargalhadas, o pessoal da redondeza recebera a notícia de que Pedrinho Pitoco passara a fazer parte do time que iria disputar a final do campeonato local.
- Eita peste! Esse tá lascado, vai jogar justamente contra Gileno?! Num vai sobrá nem a chutêra!
Antes do horário marcado a redondeza do campo já estava lotada. A torcida estava com mais interesse na briga que com certeza seria iniciada por Gileno pé de ferro, do que mesmo na enxurrada de gols que o time de Pedrinho iria levar.
Bola em campo e todos os olhares atentos. Um olhar, porém, precisava estar mais atento ainda: O de Gileno. É que no dia anterior havia levado um contratempo de um moço que ele havia insultado na pequena praça da vila. Um descuido e tome! Levou um soco no olho. No dia seguinte todos já estavam sabendo que o valentão havia apanhado e a revanche poderia ser no dia da final do campeonato.
Que nada! O “agressor” nem deu as caras, não se sabe se por medo ou por não poder andar. Mesmo sem perder a briga, Gileno precisava recuperar o nome de valentão, pois homem que é homem não apanha.
 Quase onze horas da manhã e o time do valentão estava perdendo de um a zero, Pé de ferro tinha menos de vinte e cinco minutos para recuperar o nome e virar o jogo para manter seu time invicto.
O sol forte, o cansaço e a visão embaçada foi o trio responsável por fazer Gileno escolher o mais baixinho do time adversário, embora parecesse gordinho era pequeno o suficiente para não lhe causar medo e poder iniciar o quebra-pau.
Na certeza de que uma entrada brusca levaria o gordinho ao chão e esse deixaria aos berros o campo, Pé de ferro partiu com mais de mil para cima da pobre vítima. Pobre vilão! Tarde percebeu que aquele pequeno indivíduo era Pedrinho Pitoco, que segurou o impacto e nem se abalou. Pé de ferro deu um grito que se pudesse ser medido em centímetros passaria seu tamanho. O jogo parou! Pitoco não se desesperou, ficou em posição de defesa. Os gritos de vaias que superaram os de gols incentivaram Pé de ferro levantar-se e partir como um furacão contra Pedrinho Pitoco, que com um movimento deu-lhe um balão que quase lhe estoura os ouvidos.
- Vai Pitoco!
- Vai Pé-de-ferro!
A torcida se dividiu, o jogo acabou e o campo virou ringue, os chutes e pontapés que Pé de ferro acertava em pitoco eram tantos quantos os gols que seu time havia feito naquela partida: Nenhum! O anão tão rápido quanto um raio se desviava dos ataques do gigante, que com gritos praguejava em meio a assovios e vaias.
Não fosse os mais ajuizados terem tomado a iniciativa de segurar os dois, Pé de ferro teria virado ferrugem.
Partida encerrada, final de campeonato cancelada. Nasce um herói e morre um vilão. Nas redondezas não se falava outra coisa: O Pé-de-ferro enferrujou.
Nunca mais Gileno Pé de ferro fez arruaças. Quando lhe chamavam para jogar, bastava ele se exaltar um pouco para a torcida gritar:
- Cuidado com o anão, pé de ferro!
Poderia ter nascido daí o ditado: Um dia é da caça, outro do caçador.

O BOTEQUIM DE SEU TONHO


Autor: JOSÉ AMAURI CLEMENTE


CORDEL VENCEDOR DO PREMIO LITERATURA DE CORDEL DA SECULT-AL



No Nordeste vi de tudo

De engraçado a tristonho

Já vi rico ficar pobre

Vi pobre conquistar sonho

Mas nada tão divertido

Quanto o botequim do Tonho


Ficava bem na esquina

Quase no final da rua

Pois quando alguém desejava

Matar à vontade sua

Passava a noite bebendo

Cantando ao claro da lua


E nos finais de semana

Era bem mais demorado

Se juntava velho e moço

Os casais de namorado

E dependendo das datas

Até os casais casados


Uns chamavam botequim

Boteco bar ou batuca

Espelunca e pega bebo

Tasca, bodega ou baiuca

Morada do pé inchado

Bodega ou Esfria cuca 


De seu Tonho a freguesia

De vez em quando mudava

E quem comprava fiado

As vezes nem lhe pagava

Mas só fazia uma vez

Por que seu Tonho lhe marcava


Seu Tonho anotava tudo

No caderno do fiado

E somente ele entendia

O que tinha ali notado

Quem pagava tinha crédito

Velhaco era excomungado 


Vendia quase de tudo:

Farinha, arroz e feijão

Pão francês, bolacha seca

Querosene em garrafão

Manteiga, charque e sardinha

E as vezes macarrão

Porém o que mais vendia

A noite e fim de semana

Era Conhaque e Zinebra

Cachaça feita da cana

“Vim” Jurubeba e Pitú

Nordestina e Caninana


As conversas que haviam

Vale a pena relatar

Eram fatos engraçados

O leitor vai concordar

E por isso algumas delas

Eu aqui vou recordar


Com erros no português

Cigarro preso no dedos

Cusparada e palavrões

As vezes criavam enredos

Os fregueses se sentavam

Para revelar segredos


Zequinha uma vez contou

Que foi uma pescaria

Tentou quase a noite toda

Pois já no raiar do dia

Não tinha pescado nada

E era uma noite fria


E para esquentar o quengo

Uma garrafa levou

De pinga bem temperada

Dentro da bolsa botou

E foi pescar de anzol

Por isso nada pescou


- Pescar de anzol de noite?

Foi Zequinha interrogado

Disse ele: E o que que tem?

Você tá desinformado

Vou contar aqui um caso

Que comigo foi passado


- Lá no sitio Gitirana 

Vou contar sem fazer graça

Pego peixe toda noite

Só com dose de cachaça

Já contei pra todo mundo

Quando tava aqui na praça


Quando seu Tonho lava os copo

Nessa água da bacia

Que joga a água no brejo

Peixe novo que se cria

Se vicia na cachaça

-Credo em cruz, ave Maria!


E quando eu quero pescar

Já faço isso primeiro

Encho o copo e jogo n’agua 

Quando os bichim sente o cheiro

Corre tudo pra beirada

Chega vem assim ligeiro


Eu vou derramando as dose

E eles vão se chegando

Daqui a pouco tão bebo

Um a um eu vou pegando

- Eita mentira da peste

Passou um bebo gritando


- Eu faço isso com fumo

Disse o colega sagaz

Sabendo que era mentira

Não quis ficar para trás

- Com fumo fica mais fácil

Vou dizer como é que faz


As bituca de cigarro

Quando daqui é varrida

Seu Tonho ajunta no lixo

E no rio é sacudida

Os peixe novo tudinho

Se vicia nessa lida


Vão fumando as bituquinha

Daqui a pouco os coitado

Sem querer os maiozinho

Tão tudinho aviciado

Aí quando eu boto a isca

É mais fácil ser pescado


Faço um cigarro de paia

Boto na beira do rio

Deixo lá e me afasto

E de longe eu só espio

De noite eles sai da água

Para não morrer de frio


Ficam doido pra fumar

Sente o cheiro da fumaça

Eu afirmo pra você:

É melhor do que cachaça

Até porque as bituca

Posso conseguir de graça.


Em outra situação

Ao leitor vou relatar

Juca era outro freguês

Que costumava comprar

Muitas de suas histórias

Não dava pra acreditar


Conversava com Toinho

Neto de dona Fulor

Começaram a bater papo

Cada um com mais fervor

Tudo contando vantagem

Quem suportava mais dor


Disse Juca: Sentir dor?

É besteira e eu nem ligo!

Home que é home não chora

Eu sou forte meu amigo

Vou contar um caso a tu

Que aconteceu comigo


Mês passado eu quase morro

Meu dente tava doendo

Passei a noite acordado

Parece inté que tô vendo

Era dor de matar um 

Passei a noite gemendo


Resolvi então dar fim

A dor que me perturbava

Lavei a boca com cana

Da garrafa que eu tomava

Tomei chá e comprimido

Para ver se a dor passava


De manhã pra me ver livre

Resolvi já o embate

Fui na mala de ferragem

Dei garra de um alicate

Arranquei de um por um

Com medo que a dor me mate



 - Por isso tu tá banguelo?

O bêbado tomou a frente

Tu não tem vergonha não

De contar isso pra gente

Fica inventando mentira

Só pra dizer que é valente


Com medo de uma dorzinha

Tivesse uma dor maior

Eu aguento sem chorar

O meu caso foi pior

Aconteceu mês passado

Lá no sitio do major


O major mandou levar

Sua filha na fazenda

Fica a mais de vinte légua

Vou dizer, não me ofenda

O que vou falar agora

Acredite, não é lenda


Você sabe que expedita

É bonita pra danar

Botei ela na garupa

Rapaz, quando eu fui montar

Bati meus ovos na sela

Que vi a luz se apagar


Fiquei numa posição

Sem poder me endireitar

Ela já tava montada

Eu não quis lhe incomodar

E mesmo eu não sou medroso

Não sou frouxo pra chorar


Andei mais de vinte léguas

Com os pissuído impressado

Mermo fazendo careta

Fui ali todo animado

Se fosse algum de vocês

Tava aí todo cagado.


Sempre no final da história

Tinha alguém para inventar

Cada vez uma maior

Essa que vou relatar

Aconteceu à tardinha

Ao leitor vou explicar



Foi zé Romeu que falou

Tomou a frente primeiro

Estavam contando fatos

Da briga de dois carneiro

Que eles davam cabeçada

De estremecer o terreiro


- Vocês sabem muito bem

Zé Romeu foi explicando

Acho que vocês já viram

Como é dois bicho brigando

Ficam dando cabeçada

Um no outro marretando


Foi a semana passada

Esse caso que se deu

Dois carneiros lá no sitio

Um de Tonho e outro meu

Dava tanta cabeçada

Que o pé da casa tremeu


Se afastaro um do outro

Que é para a força aumentar

Ficaram uns quarenta metros

Pra posição melhorar

Partiram com mais de cem

Pra ver quem ia ganhar


Quando um no outro bateu

Foi uma pancada triste

Pode crer não tô mentindo

Fique aí atento, assiste!

O que vi naquela tarde

Parece que não existe


Vi um bicho entrar no outro

Sem brincadeira rapaz

Ficou com duas cabeças

Uma na frente outra atrás

Acho que uma cena dessa

Eu não vejo nunca mais


O bêbado gritou de novo:

Eita mentira infeliz!

Cuidado, quem mente muito

Lhe faz crescer o nariz

Fica difícil demais

Acreditar no que diz



Tem um caso parecido

Porem mentira não é

Aconteceu mês passado

Na casa de seu Mané

Esse caso para crer

É preciso muita fé


A história é parecida

Com a que você contou

Na hora da cabeçada

Nenhum dos dois acertou

Pegaram longa distancia

Por isso um dos dois errou


Mas na carreira que vinham

Não conseguiram parar

Passaram um pelo outro

Que mal deu para enxergar

Passaram como fumaça

Só vi o vento soprar


Sumiram no fim do mundo

Que parecia rajada

Mas Jacó de seu Mané

Disse a semana passada

Que passou pelo coitado

Perto de Serra talhada


São quase quinhentas léguas

Ele sem poder parar

Tava com língua de fora

Sem o freio funcionar

Ninguém não tem nem ideia

De quando ele vai parar


- E o outro que errou?

Perguntou Toninho de Artur

Oxe! bateu a cabeça

Lá na pedra do Urubu

E entrou todinho na pedra

No to dizendo pra tu?


Falar de quem corre muito

Eu agora tô lembrado

De um caso que pai contava

Tem uns dois anos passado

Começou Toninho de Arthur

A falar desconfiado



Vovô tinha um jumentinho

Ligeiro que só o vento

Um dia ele resolveu

Experimentar o jumento

Para ver se ele corria

Vou contar nesse momento


No sitio que mãe morava

Tinha uma estrada comprida

Que dava mais de cem léguas

Toda de terra estendida

Com uma estaca bem reta

Com aquela parecida


Papai mirou na estrada

A espora foi metendo

O jumento deu um salto

E partiu doido correndo

Papai esticou os braços

Veja bem, eu tô dizendo


E com o braço estendido

Como um vento que ataca

Ele encostava a vareta 

Que batia na estaca

Fazia um taratatá

Parecendo uma catraca


Gritou o bêbado de novo:

Essa aí eu não aceito

Mentir tanto dessa forma

Isso já é desrespeito

Se é para mentir assim

Nosso encontro está desfeito


Mas antes que vá embora

Deixe eu contar primeiro

Papai tinha um jumentinho

Esse sim era ligeiro

Vou contar só esse caso

E vai ser o derradeiro


Papai montado no jegue

Resolveu fazer o teste

Partiu de caruaru

Numa carreira da peste:

-Quero ver se esse jumento

Ainda dar para o que preste



Já de Garanhuns pra lá

Ele disse que nem viu

Papai forçou mais um pouco

Porém o jegue caiu

Coitado! Já estava morto

Tentou, mas não conseguiu


Papai mediu a pressão

Viu que o jegue estava frio

Quando percebeu o caso

Deu-lhe logo um arrepio

Disse: eu não tenho certeza

Mas acho que desconfio


Desconfio mais aceito

E sei que não é besteira

Se entendo bem o caso

Depois de ver a carreira

Esse jumento morreu

Lá perto da cachoeira


Ficar a mais de dez léguas

Daqui para chegar lá

Mas na carreira que vinha

Não tinha como parar

Subiu de lá no arranque

Pra poder aqui chegar.


Entra mais um na história:

- Eita mentira do cão

Nesse dia eu tava lá

Mas eu não vi isso não

Eu vi seu pai encostado

Na grade de um caminhão


- Foi o carro que parou

Pra lhe dar uma carona

Era um caminhão de estaca

Tava coberto de lona?

Era uma trucada veia

Daquelas bem antigona


Tinha furado o peneu

E papai tava ajudando

O macaco sem ter força

E o motorista chorando

Papai teve uma ideia

De ajudar o cigano



Papai sempre foi esperto

Viu um cururu de lado

Ele empurrou pra debaixo

Do caminhão carregado

E pra confirmar o caso

Ficou assim relatado


Futocou com uma vara

O sapo chega tremeu

Inchou que só a mulesta

E o carro suspendeu

Com a ajuda do dono

Papai trocou o pneu.


Fi da peste mentiroso

Gritou seu Tonho já cansado

Botou todos pra correr

Como cachorro zangado

Apagou o candeeiro

E o botequim foi fechado


No botequim de seu Tonho

Muita coisa ainda passa

Histórias risos e fregueses

Uns sorrindo das desgraças

O que nunca falta ali

É muita mentira e cachaça.