31 de jul. de 2017

SER NEGRO

O passo à frente sob a ordem do policial fez-me entender que a igualdade apregoada pelos conformados com o sistema, está longe do que deveria ser. Tivesse o policial abordado o negro da mesma forma que abordou o motorista branco a poucos minutos, teria deixado uma impressão diferente para os espectadores.
A sabatina feita ao desconhecido “negro” não teve o mesmo tom de voz nem a mesma quantidade de perguntas feitas ao motorista anterior. Não tem o negro direito a comprar um carro do ano? Não pode o negro levar seus amigos à praia sem drogas no porta malas e sem cigarros no porta luvas? O simples baixar do vidro não teria respondido aos questionamentos sobre o negro assim como respondeu as dúvidas sobre o branco?

Um país mestiço que tenta esconder sua origem, tona-se inferior apenas por não aceitar sua diversidade.

28 de jul. de 2017

O SEGREDO DE JUDITE

PUBLICADO EM 2010, REPUBLICADO EM 2017.


Não era a primeira vez que eu ouvia passos estranhos no alpendre toda vez que chegava ao portão de casa, isso me deixava, quando não irritado, curioso. Na maioria das vezes fingia não ouvir, ou tentava encobri-los com assovios enquanto caminhava em direção à porta de entrada. Sempre nervosa, Judite, a quem havia prometido perante o sacerdote e uma gama de testemunhas composta por compadres, primos e comilões, amá-la eternamente em quase todas as adversidades, vinha me receber com um caloroso cumprimento de boas-vindas. Impossível não perceber o olhar desconfiado, cabelos despenteados, lábios trêmulos, rosto pouco suado, Olhar de quem me escondia algo. Embora preferisse ser recepcionado ouvindo o nome que minha madrinha escolheu e concretizou na pia batismal, Judite sempre repetia a mesma frase: -Tão cedo Chico? Achei que iria fazer hora extra.
Embora lesse em meus olhos a pergunta, nunca me respondeu por que demorava tanto abrir a porta quando em assovios e passos barulhentos eu caminhava pelo corredor e chamava  na porta principal. Daria tudo para entender por que a chave sempre estava por dentro, a porta sempre fechada e o lenço que costumava usar na cabeça quando estava na cozinha servia de
toalha para enxugar as mãos e o rosto.
Não gostava nenhum pouco quando me tornava o principal alvo dos olhos das mulheres nas janelas ao passar pela rua, me irritava tanto quanto a dúvida o torcer dos pescoços dos moradores em pé nas calçadas ao me virem passar, parecia sentir o peso dos olhos dos espectadores em minhas costas até dobrar a esquina da padaria. Não entendi por que o padeiro não me olhava nos olhos há três semanas, nem bom dia eu ouvia de sua boca desde os primeiros passos estranhos no meu alpendre.
Terrível era pensar que depois de quarenta e nove verões, faltando sete dias para completar mais um, a mulher que há trinta primaveras me prometeu honrar enquanto vivesse, estivesse de caso com o padeiro. Embora a saída do meu quintal desse acesso à rua da padaria, o portão de traz nunca havia sido aberto com tanta frequência como nesta última semana, a chave da dispensa que nunca saiu do chaveiro preso à parede era tão visível quanto a verdade a respeito dos passos estranhos no alpendre. As noites que se seguiram pareciam ter quarenta e oito horas, os olhares flechados em mim durante o dia pareciam estar presos ao teto, enquanto os sussurros ampliados pela criatividade do ferido pareciam gritos que acordavam a vizinhança.
Porque será que a toalha que cobria a mesa no café desta manhã não era a usada costumeiramente? Esta era a pergunta que não me saia da mente enquanto caminhava pela rua
sob o olhar dos curiosos em direção ao trabalho. Tão agradável quanto a dúvida era o ecoar da
Indagação feita ao sair de casa: Vai fazer hora extra hoje? Não me lembro de ter ouvido esta pergunta durante os trinta anos de convivência, mas esta semana já era a quarta vez.
Poderia ter voltado para casa como de costume, mas nesse dia resolvi almoçar ou pelo
menos fingir em um barzinho próximo ao local de trabalho.
Poderia chegar em casa naquele dia meia hora antes do combinado e deixar que os
herdeiros da padaria dividissem a herança mais cedo. Não hoje! pensei, não vou comemorar
cinquenta anos fugindo da polícia por cometer duplo assassinato. Quem sabe depois de amanhã? No horário costumeiro resolvi voltar para casa, ao chegar ao portão, o barulho dos passos parecia mais alto, embora emudecessem ao tilintar da chave fazendo coro com meus
assovios. Parecia até ouvir respirações ofegantes, meus sentidos diziam que alguém além de
Jú estava na cozinha. O cenário era perfeito para uma noite de amor: A casa estava arrumada, embora o sofá nem tanto, parecia que crianças haviam corrido sobre ele, a sala estava tão iluminada quanto a verdade em minha mente. Parecia não haver ninguém ali, apenas parecia, pois eu podia jurar que estava ouvindo sussurros.
Com passos trêmulos fui até a cozinha, já estava próximo à despensa, para descobrir toda a verdade, precisava apenas acender a luz... O “tic” do interruptor foi abafado pelas palmas e a voz desafinada do coro: Parabéns pra você, nessa data querida, muitas felicidades, muitos anos de vida. Pasmei!

Até hoje não entendi três coisas: Como pude desconfiar de Jú; como coube tanta gente naquela despensa e como conseguiram pagar um bolo tão grande. Sei apenas quem pagou o mico em sua primeira festa de aniversário.